Peças de desinformação compartilhadas pelas redes sociais atribuem a chineses e muçulmanos a culpa pela disseminação do novo coronavírus pelo mundo. Levantamento nas bases de dados Coronavirus Facts Alliance e CoronaVerificado encontrou 155 checagens de posts falsos que associavam a transmissão do vírus a alguma nacionalidade ou crença, publicadas entre 1º de janeiro até 18 de agosto. Moradores do país asiático ou seguidores do Islã foram os principais alvos desses boatos, que expõem preconceitos contra esses grupos.
Houve duas grandes ondas de publicações desse tipo desde o início da pandemia. A primeira e mais duradoura, que se concentrou entre janeiro e abril, culpa indivíduos chineses por espalharem o vírus pelo planeta. Isso teria ocorrido por meio de viagens feitas por moradores daquele país, pelo contágio de viajantes que passaram pela China, por pessoas dessa nacionalidade que vivem em outros lugares ou por meio de produtos exportados. Todas essas informações, que eram falsas ou foram tiradas do contexto original, não tinham qualquer relação com o novo coronavírus.
Foram publicadas 26 verificações de textos com esse tipo de conteúdo em 14 países, com destaque para Espanha (6) e Indonésia (5). No final de fevereiro, um áudio compartilhado pelo WhatsApp, por exemplo, afirmava que a mulher de um comerciante chinês da cidade de Totana, na Espanha, havia voltado de Wuhan, na China, e estava em quarentena por causa do novo coronavírus. A família citada na mensagem realmente existia e começou a sofrer represálias por conta das informações falsas. Foi preciso recorrer à polícia. O autor do boato foi descoberto com a ajuda de vizinhos e pediu desculpas publicamente.
Também em fevereiro circulou um post dizendo que 40 mil trabalhadores chineses do PT Parque Industrial Indonésia Morowali tinham sido colocados em quarentena por causa da Covid-19. O isolamento ocorreu de fato, mas o complexo de mineração contava com apenas 5,3 mil funcionários daquela nacionalidade. O número citado na peça de desinformação omitiu a presença majoritária dos indonésios entre os empregados, que totalizavam 43 mil trabalhadores. A medida restritiva no local foi adotada como precaução para evitar a transmissão do vírus, ainda que não houvesse casos confirmados.
A associação indireta de chineses ao contágio do novo coronavírus ocorreu ainda em peças de desinformação que citavam produtos fabricados naquele país. As mais comuns citavam um suposto risco na importação de itens vendidos em sites como o AliExpress. Outros tipos de itens que poderiam conter o vírus seriam cartas, apliques de cabelo, celulares, roupas usadas e máscaras. Um post chegou a dizer que o contágio ocorreria pelo suor de funcionários de fábricas de comida enlatada, que cairia sobre os produtos. Até hoje, no entanto, não há qualquer relato de contaminação desse tipo. O vírus não consegue sobreviver por semanas na superfície de objetos.
Religião como alvo
A segunda onda de informações falsas sobre pessoas responsáveis pelo contágio ocorreu de modo mais localizado, e colocou a culpa pela transmissão da Covid-19 nos muçulmanos. Foram encontradas 30 checagens com esse teor, sendo que 28 delas circularam na Índia, principalmente em abril. Boa parte desses textos afirma que os seguidores dessa religião espalharam o vírus intencionalmente pelo país ou participaram de aglomerações que favoreceram essa disseminação. De acordo com o Censo de 2011 da Índia, o islamismo é a segunda maior religião do país, atingindo 14,2% da população. O hinduísmo tem o maior número de seguidores – 79,8% dos habitantes.
Um episódio antecedeu a circulação dos posts falsos. Organizado entre os dias 13 e 15 de março, um evento do movimento missionário Tablighi Jammat na mesquita Nizamuddin Markaz, em Nova Délhi, foi responsável por cerca de um terço dos casos de Covid-19 no país registrados até o início de abril. O grupo defende que os fiéis sigam os rituais e costumes do Islamismo como se pregava no tempo de Maomé. Mais de 8 mil pessoas teriam participado da celebração, segundo as autoridades, muitas delas vindas de outros países e regiões da Índia. O templo foi fechado no final daquele mês.
Ainda assim, semanas depois desse encontro começaram a circular posts falsos sobre os muçulmanos. Os fiéis foram acusados de espalhar o vírus ao espirrar sobre outras pessoas, lamber propositalmente pratos ou cuspir em policiais, pães, comida servida em restaurantes e frutas. Também teriam espalhado cédulas de dinheiro contaminadas pelas ruas. Imagens e vídeos usados nessas peças de desinformação eram antigos, sem qualquer ligação com a pandemia. Plataformas de checagem mostraram que algumas das pessoas retratadas foram filmadas ou fotografadas em um outro contexto e não estavam contaminadas pelo novo coronavírus.
Outras checagens produzidas desde janeiro desmentiram posts que culparam indivíduos de nacionalidades ou crenças diferentes pela transmissão da Covid-19 (44) ou não especificaram essas características (55). Ao todo, pessoas naturais de 22 países foram citadas, mas as menções a habitantes de 14 deles ocorreu apenas uma vez. Três peças de desinformação responsabilizaram os norte-americanos por transmitir a doença – uma delas acusou o presidente Donald Trump de levar o vírus para a Índia.
Fonte: Lupa


