Com o aproximar das eleições norte-americanas, numa campanha marcada pela pandemia de covid-19 e por casos de violência policial e racismo, o P24 procura perceber qual o papel que a desinformação pode ter neste contexto. A transcrição deste episódio com o jornalista Paulo Pena e o politólogo Pedro Magalhães é dada a seguir:
Rui Miguel Godinho – PÚBLICO (RMG): Fake news. Um termo cada vez mais comum no nosso dia-a-dia, mas… aparentemente… contraditório. Se é falso, como pode ser notícia? Na recta final das eleições norte-americanas, o P24 de hoje procura perceber qual o papel que a desinformação pode ter neste contexto. Para isso, ouvimos o jornalista Paulo Pena e o politólogo Pedro Magalhães. Bem-vindos.
Paulo, começava por te perguntar: como evoluiu a desinformação nestes últimos meses de pandemia?
Paulo Pena (PP): “Eu diria, Rui, que o principal problema foi nos momentos iniciais da pandemia, onde a desinformação conseguiu criar algum pânico e alastrar algum tipo de sentimento de insegurança. Nessa altura, o que era bastante visível era uma tentativa de fazer com que as pessoas por um lado não acreditassem nos valores que estavam a ser indicados pelas autoridades e era sobretudo o WhatsApp que era usado para isso. Algumas das mensagens mais frequentes eram gravadas supostamente por médicos ou médicas ou pessoas com conhecimento directo. Esse tipo de mensagens tentava fazer crer que havia muito mais casos do que aqueles que estavam a ser revelados ou, por outro lado, aquelas que tiveram impacto directo na vida das pessoas, que garantiam ter fontes muito próximas do Governo, e que diziam coisas como ‘os supermercados vão fechar, por isso tenham cuidado e abasteçam-se de produtos”
RMG: Dando aqui um salto no tempo e abordando um contexto um bocadinho mais específico. A pouco menos de um mês das eleições nos Estados Unidos, qual é o papel esperado da desinformação neste contexto?
PP: “Eu infelizmente creio que o papel que a desinformação joga no contexto das eleições norte-americanas é, potencialmente, muito forte. Por um lado, porque estamos perante uma eleição que é decidida por um eleitorado que está completamente polarizado. É muito engraçado nós repararmos – e isso já foi citado por vários autores – o que todos os estudos de opinião mostravam, ao longo das últimas décadas, era que havia, quer da parte dos republicanos quer dos democratas, alguma consideração pelos políticos adversários. Não vou avançar com nenhuma percentagem para não errar, mas havia uma grande percentagem dos republicanos que viam com bons olhos a forma como os democratas também eram patriotas e estavam preocupados com os assuntos importantes, etc. Ao longo do tempo, essa margem tem vindo a diminuir e é inferior a 10%, ou seja, os republicanos e os democratas parecem considerar-se mutuamente não como adversários políticos, mas como inimigos, como pessoas diametralmente opostas. Uns encaram os outros como sendo, enfim, a encarnação do mal”
RMG: O Pedro é alguém que acompanha a realidade dos Estados Unidos de uma forma muito próxima e diferente. Como é que tem sido acompanhar esta campanha eleitoral muito marcada pela pandemia, muito marcada também pelo racismo e pela violência policial. Como é acompanhar uma campanha destas num contexto diferente como este?
Pedro Magalhães (PM): “Bem, eu acompanho a campanha através de alguns meios de comunicação em particular, como o New York Times e o Washington Post, que sigo com mais atenção e também através das redes sociais, em particular o Twitter. A ideia com que eu fico, especialmente porque de vez saio um bocadinho desta bolha e vou ver coisas com o Breitbart News e a Fox News, a ideia com que fico é que eu, mas também certamente a maior parte dos americanos estão cada vez mais expostos a uma parte muito selectiva da informação e que enquadra as notícias e os eventos de uma forma muito politizada. Isso é verdade para o New York Times e o Washington Post – mais até do que eu julgava possível -, e não quero com isto contestar a qualidade da informação (que é grande), mas não há dúvida que há um ângulo, um enviesamento, uma procura de notícias e de eventos que procuram, no fundo, descredibilizar Donald Trump. Isso é uma coisa bastante sistemática. Depois temos, por outro lado, uma coisa muito parecida, mas que, por exemplo, em sites como o Breitbart News (que é muito consumido), que vai um pouco além disso: não é apenas uma versão tendenciosa das notícias, mas é também a multiplicação de algumas notícias que são manifestamente falsas. Não é muito fácil confirmar a falsidade. Algumas são tão obviamente falsas, que é fácil ver, mas em muitas isso não é assim. Mas o que eu queria dizer com isto é que, para mim, acompanhar esta campanha, tem este lado frustrante, que é de perceber que todas as fontes de informação estão sempre à procura de um ângulo – que é sempre um ângulo que procura prejudicar ou beneficiar um determinado candidato. Mas, por outro lado, esta constatação factual importante que não resulta da minha leitura das notícias agora, resulta até de bastante investigação no assunto: o público americano, e por extensão quem consome notícias dos Estados Unidos, fora do país, estão colocados numa espécie de bolhas, em que no fundo passam a vida a ler coisas que confirmam já as suas opiniões.”
RMG: Paulo, a certa altura, no teu livro Fábrica de Mentiras, tu referes que as redes sociais são o palco perfeito para o disseminar de ideias mais radicais e para grupos sem representação “normal”, digamos assim. É esperado que este cenário continue a ser verificado? O que te diz a experiência e um bocadinho a tua intuição, neste contexto?
PP: “Também vou ser pessimista nesta resposta. As redes sociais – estamos a falar sobretudo daquelas que chegam a milhares de milhões de pessoas (como o Facebook, o WhatsApp, o Instagram, o YouTube, de uma outra forma o Twitter) – por maiores ou menores preocupações que tenham sobre os efeitos que a desinformação tem sobre os seus utilizadores, são redes que vivem de um negócio muito simples. As redes sociais não existem apenas para nos conectar, ou para garantir a possibilidade de termos acesso a pessoas que vivem noutras partes do mundo, ou a amigos que estão distantes. As redes sociais existem porque são um negócio publicitário. Ou seja, as redes sociais oferecem-nos esse acesso a essas pessoas, essa sociabilização online, em troca de conhecerem de uma forma inédita na nossa história, os nossos gostos, as nossas convicções mais íntimas, etc. Porque o que os algoritmos das redes sociais fazem é seriar tudo aquilo que nós deixamos como rasto online para poderem prever aquilo que vamos gostar no futuro e darem-nos isso em troca de um óptimo valor que isso lhes dá para poderem vender publicidade a todas as marcas e empresas. Portanto, o que eu temo que aconteça é que as redes sociais considerem a desinformação um problema menor na sua vida, porque as redes sociais não estão a diminuir o seu número de utilizadores. Continuam a ser muito relevantes e, enfim, em Portugal há seis milhões de contas no Facebook. Não são todas de pessoas, temos de ter isso bem presente. Destes seis milhões, uma boa percentagem são contas falsas, são perfis falsos com esse intuito de nos vender coisas ou manipular para determinadas ideias. A nível mundial, mais de 2,5 mil milhões de contas é um número avassalador que garante um negócio publicitário excelente para o Facebook, neste caso, e que nos deve preocupar que essa ordem de grandeza significa para o Facebook que as pessoas gostam do que se está a passar. Por isso, não espero grandes mudanças a esse nível.”
RMG: O Pedro falou no Breitbart News e nesse tipo de espaços. Qual é o papel? Podem contribuir mais para a polarização neste contexto de eleições e de campanha?
PM: “Contribuem, certamente, claro.”
RMG: Em que aspectos?
PM: “Contribuem no sentido em que dizia no início. Porque são vistas como fontes de informação preferenciais por eleitores republicanos e conservadores e não há absolutamente nada que essas pessoas consigam ler nesses meios de comunicação que contrarie as suas ideias. Pelo contrário. Tudo aquilo que vêem é a alimentação não só da ideia de que o adversário tem ideias que estão muito longe das nossas, mas também que são pessoas, em si mesmo, indesejáveis e nefastas. A polarização hoje em dia não é apenas uma polarização ideológica, é também uma polarização acfetiva. É a ideia de que as pessoas que estão do outro lado quase que não pertencem à nossa comunidade política, são invasores, não são verdadeiros americanos, não são pessoas sérias. São pessoas perversas e com objectivos perversos. Claro que isso reforça a polarização e isso faz com que a capacidade de persuadir estas pessoas ou outras a fazerem qualquer coisa de diferente daquilo que têm feito em todas as eleições anteriores seja muito baixa, e é muito difícil persuadir pessoas num eleitorado tão fortemente polarizado e cuja polarização é reforçada através destes meios.”
RMG: Eu perguntava-lhe se é esperado que este clima mais crispado e mais atípico que vivemos possa ir novamente aos eleitores indecisos nos chamados swing states, e se a informação boa e verídica pode ter um papel preponderante, e até que ponto é que correntes de desinformação como o caso Pizzagate, que aconteceu em 2016 não podem voltar a acontecer? E a terem um papel mais preponderante e mais vincado nas eleições porque o contexto é diferente…
PM: “O caso Pizzagate tem graça, porque foi numa pizzaria a que eu costumava ir quando vivia em Washington. Fiquei muito desgostoso com tudo o que se passou e assustado, até, de alguma forma. Esse caso também teve importância porque acabou por suscitar, por parte de uma pessoa desequilibrada, uma atitude perigosa. Esses factos podem acontecer, mas mais uma vez – e queria enfatizar com isto é provisório – estes casos sucedem e podem aumentar a crispação e a polarização, mas essa crispação e essa polarização já lá estão e já influenciam muito o comportamento das pessoas. Mas influenciam não tanto no sentido de que uma coisa como esta possa mudar o resultado de uma eleição, pode reforçar as posições, as atitudes e as predisposições que as pessoas já têm. Aliás, uma das consequências da polarização nos Estados Unidos é que uma grande parte dos eleitores – a grande maioria, até – não é susceptível de ser persuadida num sentido ou noutro. Ou seja, está completamente enquistada nas suas posições, nas suas decisões. Tudo o que se joga não é tanto a capacidade de persuadir alguém, mas sim a capacidade de mobilizar ou desmobilizar bases eleitorais preexistentes. E claro que através desse fenómeno da mobilização e da desmobilização também se joga um resultado eleitoral. A mensagem que eu queria deixar é que o poder enorme dos media sociais, o poder enorme de empresas como a Cambridge Analytica, o poder enorme do data mining, do micro-targetting, na base daquilo que sabemos, isso é que é fake news. E é uma fake news perigosa, porque pode levar – e isso sim com consequências – a que as pessoas deixem de conseguir atribuir qualquer credibilidade a fontes de informação sérias. Mesmo que enviesadas num sentido ou noutro, são sérias. E que deixem de consumir informação por sentirem que não há forma nenhuma de conseguirem informação objectiva. Pode-se gerar um efeito de cinismo, de desafeição política que, esse sim, não é saudável para nenhuma democracia. Mas queria deixar vincado que esta ideia da omnipotência destes fenómenos é uma ideia muito alimentada e muito criada por aqueles que têm interesse em que se sinta essa omnipotência.”
RMG: Paulo, até que ponto é que um caso Cambridge Analytica está salvaguardado, neste caso? Porque, vejamos, temos cada vez mais anúncios personalizados, como tu falaste, e publicidade direccionada. Como se pode evitar essa parcialidade da rede social em relação a certos assuntos?
PP: “Eu creio que a única maneira de garantir que não voltamos a ter um caso Cambridge Analytica daquela forma é garantir que há transparência e regulação sobre as redes sociais. Não vejo outra forma. A outra forma seria que cada um de nós, cidadãos, tivesse consciência de que a privacidade dos seus dados é um valor muito importante que tem de preservar, e, portanto, não deve fornecer às redes sociais e às grandes plataformas, como o Google, da forma como estamos a fazer. O problema da publicidade direccionada, que é também um prego no caixão da informação boa e do jornalismo, o que faz é garantir que a mensagem à qual a publicidade está associada é a que chega ao maior número de pessoas. Não é a mensagem mais relevante, mais importante. E o jornalismo sempre foi isso. O jornalismo precisa de ser não a mensagem que chega ao universo maior possível sem qualquer tipo de condições éticas ou de condições morais para o fazer. Enquanto isso, a publicidade direccionada premeia o clique fácil e a mensagem viral – para usar o termo da doença, que neste caso até é apropriado. Por isso, eu creio que a única forma é a regulação. É a regulação económica, obrigando as grandes plataformas a fazer pagamentos de impostos que sejam compatíveis com este nível de negócio e que forneçam aos Estados mecanismos de compensar os efeitos que as redes sociais possam ter sobre o valor da informação. E por outro lado, a própria transparência que nós possamos estar, ainda agora no documentário The Social Dilemma, da Netflix, perante um algoritmo que funciona por si próprio, que se auto-alimenta do êxito que pode ter a tentar manipular-nos. Para ser mais concreto: eu fiz uma vez uma experiência que todos podemos fazer, que é usar a nossa conta do Facebook e clicar apenas num assunto. No meu caso, fiz com futebol. Portanto, eu apenas clicava nos links que me interessavam sobre futebol. Ao fim de algum tempo, o meu feed de notícias passou a ter 80% de links sobre futebol e, portanto, todos os outros assuntos que o algoritmo do Facebook me dava, como percebeu que não clicava neles, deixou de mos dar. E é essa a noção que temos de ter. Somos nós que alimentamos esta disfunção, também. E também parte de nós a função de a poder contrariar e por isso é que digo sempre: o único conselho que posso dar às pessoas é que tenham cuidado com o que partilham, com o tipo de interacções que fazem ou estabelecem online porque se [as pessoas] partilham todos os assuntos que lhes dizem respeito ou que lhes tocam nalguma área do seu interesse social, estão a fechar-se numa bolha de temas em que o Facebook ou as outras redes sociais as vão aprisionar.”
RMG: O P24 de hoje fica por aqui. Resto de uma boa semana. Até à próxima.
Fonte: Publico Mundo


