Neste momento em que o Congresso discute medidas para conter a disseminação de fake news e que a pandemia de coronavírus nos faz acompanhar, cada vez mais de perto, o progresso da pesquisa com vacinas e antídotos, torna-se crucial reconhecer e valorizar a boa divulgação científica. Vários fatores concorreram para a indisposição social com as universidades brasileiras e sua demonização política, junto com as artes e a educação em geral. Entre eles está a crônica dificuldade em esclarecer apropriadamente a importância e a complexidade do processo de produção do conhecimento científico.
O negacionismo científico, porta de entrada para a intolerância religiosa, o dogmatismo cultural e o fascismo político, fermenta a sede de certezas. Nem sempre a ciência tem respostas para nossas incertezas. Isso cria a tentação psíquica para aderirmos a enunciados fáceis e crenças resseguradoras. Isso tende a identificar a ciência, como forma de saber, com a tecnologia, como produção de objetos e processos derivados deste saber.
Saber como funciona o SARS-CoV-2 é diferente de produzir e distribuir vacinas contra a covid-19, que por sua vez é distinto de tratar pacientes em um hospital, ou com a política pública de saúde. Apesar das diferenças, nos referimos a tudo isso como ciência. Apesar da complexidade, sabemos que a divulgação dos benefícios da cloroquina, o anúncio de fórmulas mágicas de cura e proteção são fake news científicos. Fake news no campo da ciência podem ser definidas como notícias que abordam problemas de ciência com imperícia na apresentação dos fatos, imprudência quanto ao impacto junto ao público ou negligência na tradução da complexidade da matéria tratada.
O contexto da pós-verdade nem sempre é formado por enunciados individualmente falsos e contrariáveis com a experiência por um sistema de checagem. Muitas vezes afirmações verdadeiras ou plausíveis conduzem a conclusões falsas ou mal-intencionadas. Nosso momento pede urgentemente mais e melhor divulgação científica, mas isso não será obtido tomando a ciência como a única forma de conhecimento válida, útil e pertinente ou misturando tecnologia, metodologia e teoria da ciência com marketing e moral. O desafio não é pequeno porque a própria definição de ciência sofre severas flutuações, conforme consideremos sua história, os conceitos teóricos das diferentes disciplinas, os objetos específicos, os métodos de investigação, as práticas associadas ou as tecnologias derivadas.
Em vez de expor um conjunto de considerações sobre a ciência em geral, tentando homogenizar critérios relativamente específicos de cada ciência, o texto discuti um caso modelo de fake news científica, em uma área sabidamente instável do ponto de vista epistemológico, ou seja, a Psicologia. Trata-se de uma matéria publicada pelo site de divulgação científica “Questão de Ciência”, chamado “A Psicanálise e o infindável ciclo pseudocientífico da confirmação”, cujo autor, Ronaldo Pilati, professor em Psicologia Social na UNB, possui uma carreira destacada das ciências cognitivas, mas que, neste caso, aventurou-se a tecer críticas contra a psicanálise, matéria na qual não possui nenhum trabalho a respeito. O texto consegue reunir tamanho número de falácias, imprecisões e equívocos que se se presta a exemplificar paradigmaticamente o que deve ser evitado em termos de divulgação científica.
Fonte: UOL


