Mesmo diante do novo aumento de casos e óbitos causados pela Covid-19 no Brasil, um dos grandes temas da semana no país foi o retorno das aulas presenciais, suspensas desde março. Enquanto o vírus não é controlado e o impasse prossegue, os profissionais da educação vivem um cotidiano de superação em meio ao ensino on-line, a sobrecarga de trabalho e a falta de condições adequadas para exercer suas funções.
Victor Polillo [27 anos, professor de matemática] e Lau Lúcio [25 anos, professor de história e sociologia] são dois exemplos concretos dessa realidade. Acostumados ao exercício da profissão dentro das salas de aula em um cursinho popular pré-vestibular na região do ABC paulista, a dupla relatou ao Yahoo! como têm sido os meses de atuação durante a pandemia.
A diferença na interação com os alunos e nos métodos adotados durante as aulas on-line foi um dos primeiros obstáculos.
“O mais desafiador para mim foi não conseguir identificar dificuldades e facilidades dos estudantes. É muito mais difícil perceber os feedbacks [“retorno”, em tradução livre] dos alunos. Na sala de aula, é mais fácil perceber quando o estudante está mexendo no celular, saindo da sala constantemente ou até dormindo”, explica Lau que admitiu estranheza diante da sensação de “falar para o computador” e ver os estudantes reduzidos a “nomes” e “avatares”.
Para Victor, as dúvidas dos alunos certamente aumentaram ao longo do ano, mas os questionamentos diminuíram, apesar da insistência dos professores para que os alunos externassem o que não foi compreendido.
“Eu sou professor de matemática, não é uma matéria tranquila e pessoal tem bastante dificuldade. Pergunto se está tudo bem e às vezes não respondem. Ainda me disponibilizo para receber dúvidas de forma privada [fora da aula], o que ajuda, mas não se compara com a dinâmica da sala de aula”.
Dificuldades técnicas atingem alunos e professores
Desde o início da pandemia já era sabido que o ensino virtual não atingiria a todos da mesma forma. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios de 2019, 96,5% dos mais ricos do país (classes A e B) possuem casas com sinal de internet, enquanto 59% dos menos favorecidos (classes D e E) não conseguem acesso ao mundo virtual.
Victor, que é morador da zona leste da capital paulista, ressalta que os eventuais problemas de conexão prejudicam a dinâmica de aprendizado.
“Atrapalha um pouco, eu tive poucos problemas com a internet, minha aula caiu uma ou duas vezes apenas em meses. Acontece mais vezes da conexão do estudante cair, o que faz com que ele perca parte da explicação. Quando ele volta, o conteúdo já está numa parte em que ele não consegue acompanhar”, explica o professor que diz usar um tablet próprio para fazer as vezes de lousa e auxiliar na didática da aula.
O professor de história confirma um dado mostrado pela pesquisa acima. Na visão de Lau, há muita diferença entre o aluno que acompanha as aulas pelo computador e o que assiste pelo celular. O primeiro equipamento, para o docente, é mais adequado. No entanto, segundo a TIC Domicílios, entre a população cuja renda familiar é inferior a um salário mínimo, 78% das pessoas com acesso à internet usam exclusivamente o celular.
Alta evasão e abandono por parte das autoridades
Ao Yahoo!, a dupla relatou episódios de alunos que desenvolveram ansiedade e até depressão durante o período das aulas online. Cenário que, aliado aos problemas técnicos, resultou numa evasão acima do normal.
“Notei que eles perderam a perspectiva. Muitos apostaram tudo para 2021. Não sabemos como vai ser. Eu também entendo que muitos deles não se adaptaram ao sistema EAD [Ensino a Distância]. Houve um acúmulo de motivos para a evasão, o que é bem preocupante”, avalia Lau. Victor, por sua vez, alerta para os cuidados com o psicológico dos alunos.
“No contexto de alunos mais expostos e vulneráveis como os nossos, isso [evasão] já era comum. A pandemia veio e potencializou. O pior não é não ter conseguido acompanhar as aulas, mas sim se sentir incapaz por isso”.
Nesta quinta-quinta-feira (03), após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defender a volta presencial das aulas “em todos os níveis”, o vice-presidente Hamilton Mourão disse ver uma “hipocrisia” nos que são contrários ao retorno, afirmando que estudantes “vão para a balada”, mas não querem retornar às salas de aula. A tese do militar, no entanto, parece não levar em conta os reais problemas do cotidiano dos profissionais da área.
“Acho que foi o ano que eu mais tive crises de ansiedade, mas consegui lidar. Tenho privilégio de fazer terapia semanalmente, isso ajudou demais. Os estudantes estavam sempre à flor da pele”, conta o professor de história, que critica a falta de apoio das autoridades estaduais e federais durante a crise sanitária.
Victor, que além das aulas no cursinho popular também oferece aulas particulares e mantém um canal no youtube, revela o tamanho da sobrecarga durante o ano caótico de pandemia.
“No cursinho acumulamos cargos (professor e coordenação), aumentou as aulas particulares e outros projetos acabam tomando bastante tempo: canal no youtube e perfis em redes sociais voltados ao ensino da matemática. Sei que não é saudável, mas houve um período da pandemia em que eu ficava das 8h às 23h na frente do computador. Todo o tempo em que eu estava acordado, eu estava trabalhando”, relata.
Perspectiva para o futuro
Apesar do ano atípico e do futuro incerto, Victor diz que a vontade de estar na sala de aula quando for seguro para todos continua intacta.
“Fiquei mais atento para os problemas que todos os professores enfrentam e isso me fez pensar sobre como a profissão é necessária. Sem pandemia, o professor já era desvalorizado e não falo apenas na questão de remuneração. Certamente vai haver quem defenda mais ensino à distancia e uma precarização maior da área, então precisamos estar atentos para combater isso”, alertou o docente.
Lau, por sua vez, admite um certo desânimo com a profissão, mas se diz motivado a combater o que chamou de “comercialização” da educação.
“Não cheguei a pensar com calma no futuro, mas acho que vai ficar ainda mais difícil. Vejo a educação se tornando um produto e isso é um perigo. Já entrei na área sabendo que seria difícil, então sigo nessa perspectiva de lutar para que a educação seja cada vez mais para todas as pessoas. É um combate que pretendo continuar enfrentando”, projetou.
Fonte: Yahoo!