Gustavo Biasoli Alves
Glauco Vieira Miranda
Leiliane Pereira de Rezende
Grupo de Trabalho Pesquisas Científicas Portal da COVID-19 da UTFPR “Informando
para Superar” https://covid.sh.utfpr.edu.br
13 de agosto de 2020
Entre os efeitos da pandemia estão as resistências dos indivíduos ao isolamento social e às vacinas desenvolvidas para imunização em massa. Estes indivíduos definem tais atos como a defesa das liberdades individuais e da ameaça de dominação por uma potência estrangeira com valores estranhos aos que eles professam. Entretanto, mesmo que os indivíduos tenham suas diferenças reconhecidas, deve-se lembrar que o espelho da Liberdade é a Responsabilidade. Além disso, existe a ciência com seus princípios, procedimentos e ética reconhecidos e que devem ser respeitados neste momento para que não se produzam resultados desastrosos em curto ou médio prazo. Por fim, pode-se dizer que houve e ainda haverá uma curva de aprendizado acentuado e popularização em outras áreas da ciência, tais como, estatística, economia, educação, história e antropologia, levando à reflexões sobre as exclusões sociais de agora e de um futuro próximo.
Nos últimos meses temos publicado uma série de notícias abordando os progressos no desenvolvimento e produção de fármacos e a resistência ao uso a estes. Como é possível abordar isto que está acontecendo? Para responder a questão escolhemos um autor de viés anarquista (Thoreau), outro do contratualismo (Hobbes) e vários de viés liberal (Hayek, Tocqueville, Rawls e Frazer). Completamos a análise com algumas perspectivas historiográficas e ambientais contemporâneas. Não se irá aqui esmiuçar e debater cada um destes tópicos, mas mostrar como o seu pensamento joga luz sobre temas tão atuais.
Em brilhante estudo sobre as origens e consequências dos regimes totalitários, Friederich von Hayek afirmou que o poder, quando exercido sem controle, ainda que por governantes democraticamente eleitos, se converte numa arma letal e o que deriva daí é um autoritarismo tão perigoso e pernicioso quanto o fascismo, o nazismo ou qualquer outro (HAYEK, 2010).
No entanto, que sentido tem trazer o pensamento deste Prêmio Nobel e destacado professor de economia para debatermos uma pandemia, vacinas e remédios? A questão é intrincada pois deve nos levar a debater os limites da ação e da liberdade individual e levar a reflexão sobre como o cidadão deve postar-se diante das atitudes dos governantes quando alguns pressupostos científicos são reiteradamente desobedecidos ou postos em cheque. A questão se revela de importância ainda maior hoje quando se pensa o Pacto de Vacinas proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o movimento anti vacina.
Aos indivíduos que não queiram vacinar-se, há, por suposto, o caminho da desobediência civil proposto por H.D. Thoreau, mas a despeito do quão ecologicamente bom e hoje sustentável viver em uma cabana possa parecer, o exemplo do autor estadunidense nos deve levar a refletir que o Estado, ainda
que ocupado por governantes que possam ser arbitrários, sempre encontrará uma forma de nos encontrar, cobrar os impostos devidos e nos colocar na cadeia (THOREAU; COUTO, 2012).
Ou seja, a razoabilidade, a virtude e o cumprimento da lei no exercício da função pública devem ser colunas mestras do agente público e não há nada de autoritário ou tirânico em agir assim. O contrário que é autoritário e tirânico, pois torna a sociedade refém de uma minoria, perigo este analisado de maneira exemplar por Alexis de Tocqueville e por toda a Ciência Política desde Maquiavel que desde então vem elaborando conceitos que embasam leis, organismos e ações para que isto não ocorra (WEFFORT, 2006a; WEFFORT, 2006b).
É sob este viés que atitudes tomadas por governantes que insistem em medicamentos que não tem a devida comprovação científica de sua eficácia, bem como a maneira atabalhoada com que se tem aplicado vacinas e proposto a sua aplicação, deve nos levar a apontar os perigos que esta busca desenfreada por uma patente e pela dianteira na corrida tem que ter.
A ciência tem seus princípios, procedimentos e ética e é importante que estes sejam conhecidos e respeitados neste momento para que não se produzam resultados desastrosos em curto ou médio prazo, ou estamos dispostos a correr o risco de uma nova tragédia da talidomida? (MORO; INVERNIZZI, 2017) Não é demais aqui trazer a cena o pensamento de outro destacado autor liberal, Karl Popper, quanto este afirma que a característica maior do pensamento científico é o falseamento da verdade, o questionamento constante que nos leva a aperfeiçoar continuamente teorias, métodos e produtos.
A ciência tem dado respostas claras e céleres ao problema que a sociedade enfrenta, assim é que vislumbra-se já para os próximos meses, se não dias, o início da cobertura vacinal. Há tempos já se tem notícias sobre tratamentos eficazes ou não e é nítido que o avanço dos testes com vacinas e estudos epidemiológicos de maior alcance, como a EPICOVID levarão a uma compreensão melhor do comportamento do SARSCOV2 e a melhorias nas estratégias de enfrentamento desta pandemia.
Soma-se a isso o fato que o desenvolvimento dos imunizantes está colocando a produção de vacinas em outro patamar, já que as mais promissoras ou baseiamse na junção de procedimentos de duas firmas, como é o caso do produto da GSK-Sanofi, ou tem a novíssima tecnologia do adenovírus humano como a Sputnik V. Ao mesmo tempo, novos atores mundiais entraram em cena, e nos referimos aqui a China e a Rússia além dos governos estaduais brasileiros que tiveram papel de destaque ao colocar suas estruturas de pesquisa e testagem a disposição, o que se revelará no ganho imediato de doses disponíveis e também na experiência pioneira de produzir este tipo de fármacos nos Estados.
Houve também uma popularização de aprendizado acentuado em outras áreas: a Estatística viu-se exposta de uma maneira bastante ampla com o fator R e as projeções em torno do pico das contaminações sendo discutidos abertamente. Historiadores e antropólogos foram ouvidos sobre as lições que os enfrentamentos de pandemias passadas nos deixaram e sobre como os rituais
fúnebres rápidos de hoje em dia tem nos afetados.
Ainda neste ínterim, economistas serão chamados a analisar as históricas quedas do PIB e a propor soluções de longo prazo. Questiona-se também o modo de consumir e iniciativas como a Economia Verde e a Economia Circular ganharam espaço. A sociedade como um todo foi chamada a experimentar processos de educação não presencial e se vê obrigada a encarar de frente e de maneira efetiva as mazelas e as virtudes do ensino tal como ele estava estruturado, ao mesmo tempo em que é chocada pela visibilidade da exclusão social de negros, mulheres, pobres, indígenas e migrantes.
Em livro recentemente lançado o historiador David Christian (CHRISTIAN; SOARES, 2019) aponta que desde o Big Bang até nossos dias uma sucessão de eventos em torno dos quais gravita uma lógica permanente de ordenamento e desordenamento levou a que chegássemos ao mundo tal como conhecemos. O autor também argumenta que nossos melhores modelos matemáticos e computacionais são capazes de prever o impacto de um asteroide, mas estão pouco ou quase nada adaptados para medir o impacto das ações humanas.
A respeito disso, um alerta soa:
Mitos de todos os tipos podem nos dizer muito sobre como enfrentar um futuro imprevisível, porque eles estão cheios de histórias sobre quase acidentes, fracassos catastróficos
e missões que nunca tiveram sucesso. O que há de novo hoje é a possibilidade de um acidente que envolveria 7 bilhões de pessoas, tendo milhões de outros organismos como expectadores e vítimas. Deste modo, os seres humanos modernos, como os heróis e as heroínas de todos os bons mitos, tem uma tarefa, a de evitar o acidente e chegar a um bom lugar tanto para os seres humanos quanto para a biosfera, porque sabemos que não há um bom lugar para nós numa biosfera arruinada. (CHRISTIAN; SOARES, 2019, pag.336).
Contudo o autor aponta que temos uma admirável capacidade de aprender coletivamente e que esta capacidade foi um dos fatores essenciais ao desenvolvimento da espécie humana. Diversos estudos recentes apontam que há uma relação intrínseca entre alimentação (acesso e qualidade), convívio social (proteção do grupo e sociabilidade) e desenvolvimento do corpo humano.
Esta questão parece não estar sendo encarada com o devido cuidado e o devido respeito quando se vê cidadãos marchando em protestos contra o isolamento social e as vacinas, o que nos leva a ter que examinar com cuidado limites e ações em torno desta questão.
Dois dos argumentos centrais dos que defendem a não aplicação de vacinas e o fim do isolamento social são a defesa das liberdades individuais e a ameaça da dominação por uma potência estrangeira com valores estranhos aos que eles professam. O primeiro aspecto merece a análise sob o ponto de vista do limite entre o que é um princípio, a liberdade individual e o que é a garantia do direito
coletivo a saúde pública. Juridicamente ambos são bastante defensáveis, mas cabe uma primeira reflexão sob o aspecto ético pensando que nem tudo o que se quer se pode e nem tudo o que se pode se deve fazer. Estabelecer esta gradação foi fundamental para a sobrevivência da espécie humana e para o surgimento de um mínimo de sociabilidade. Traduzindo-a para o aspecto político, Thomas Hobbes e os contratualistas estabeleceram há séculos um pilar fundamental do Estado de Direito: o indivíduo abre mão de parte de sua liberdade em favor de um coletivo que garante os direitos de todos, a liberdade aí inclusa, caso contrário a existência do próprio indivíduo se vê ameaçada. Hobbes é de todos eles o mais taxativo ao afirmar que o “o homem é o lobo do próprio homem”. Ou seja, o ser humano é tão mal e mesquinho que é capaz de ameaçar a existência de um semelhante em favor de si, dos seus e de seus pensamentos e ideais. Para combater esta ameaça é que o Estado, chamado por Hobbes de Leviatã se estruturou.
Hobbes serve também para que se olhe o problema pela ótica das Relações Internacionais: o desdobramento de suas premissas para a ótica das relações entre Estados levou ao surgimento da corrente Realista, que via o ambiente internacional como anárquico porque não sujeito a um Estado que fosse superior a outros Estados, cabendo a estes portanto estarem constantemente preparados para a guerra e ameaçando aos demais, projetando seu poder de maneira dura (hardpower). As consequências disto foram duas guerras mundiais de proporções enormes e o caminho para o que hoje se entende como uma relativa paz negativa e uma busca por soluções pelo viés Liberal das relações internacionais, ou seja, a colaboração.
Aqui cabe um comentário sobre o posicionamento da OMS, representante do Sistema ONU (Organização das Nações Unidas) surgido ao final da Segunda Guerra como forma de solucionar pacificamente os conflitos: a busca por um Pacto Global de Vacinas e por uma distribuição minimante igualitária de fármacos respeita a seus pilares e remonta ao proposto por Woodrow Wilson, presidente estadunidense que a idealizou: soluções consensualizadas, equilíbrio entre os membros e distribuição minimamente igualitária dos bens mundiais, a saúde sendo um deles.
Esta organização e o sistema criado após a Segunda Guerra Mundial possuem um intrincado sistema de proposição e contestação de ações entre seus Estados-Membros. Sendo assim, indivíduos de um país apontarem a ameaça de uma suposta agressão que possa acontecer via fármacos, sem que o que compõe estes fármacos tenha sido esclarecido e sem que os canais de negociação previstos no sistema tenham sido esgotados, é desprovido de sentido igualmente e é perigoso porque aponta para a guerra, que como apontam os estudiosos das Relações Internacionais é, das ações humanas a que talvez seja a mais desprovida de racionalidade, pois em razão de ódios, rancores e desconfianças entre povos e até entre pessoas, se impõe um custo muito alto: vidas e bens.
A guerra não é, portanto, uma ação racional. Ainda que autores como Aron, Bath e Paim (2018), Clausewitz e Ramos (2017) e outros enxerguem na declaração desta uma ação racional por parte dos Estados que assim buscam se manter e aniquilar a ameaça de outros Estados. O potencial destruidor de uma guerra nos leva a apontar que o máximo que pode fazer com ela é metaforizála, tal como na expressão “Guerra por Vacinas”, sugerindo uma competição acirrada.
Mais razoável é trazer a cena autores como John Rawls e Nancy Frazer¹ e deles recuperar os conceitos de equidade e redistribuição: o ideal para que o Direito seja exercido e para que ocorra a Justiça é que indivíduos tenham suas diferenças reconhecidas, mas que estas não se transformem em desigualdades de acesso a alguns bens básicos e nem aos recursos que o Estado pode prover. Extrapolando este pensamento para o acesso a vacinas, é justo sim que elas sejam entendidas como algo a que todos devem ter acesso independentemente de sua cor, credo religioso, etc. ou do quanto o país de sua origem ou onde vivem tenha contribuído para o desenvolvimento dos produtos, afinal, tratase da distribuição igualitária e justa do maior bem e do maior direito do ser humano: a Vida.
Por fim, cabe uma pergunta aos que negam a ciência e aos que não querem tomar vacinas: estariam eles dispostos a arcar com as consequências de seus atos para a coletividade? Não é demais lembrar que o espelho da Liberdade é a Responsabilidade: sou um indivíduo livre porque a lei me permite, a respeito e tenho condições de arcar com as consequências dos meus atos, inclusive de responder perante a Lei e o Estado. Arcar coletivamente com os bens públicos foi a fórmula encontrada até agora. Seria racional esta privatização?
Estes são alguns dos perigos nos quais incorrem governantes que não respeitam ou entendem a ciência e indivíduos que pleiteiam que sua liberdade esteja acima do direito dos demais. Alertá-los é dever. Coibir dentro da lei suas ações também. E pensamos que se deve alertar os agentes públicos para que assim o façam, pois o que está em risco é muito sério.
¹No início deste século a autora estabeleceu com Axel Honneth um célebre debate sobre redistribuição da justiça em que apontou ser necessário que os movimentos sociais tivessem sua posição reconhecida e que as diferenças no acesso a justiça fossem minimizadas, ao passo que a posição de Honneth é mais positivista. Aqui pegamos apenas o posicionamento geral da autora. Para os que quiserem se aprofundar sugere-se Bressiani (2011) e, também, Fraser (2019). Já o pensamento de Rawls poderá ser visto em seu célebre livro Uma Teoria da Justiça que teve várias edições.
Referências
ARON, R.; BATH, S.; PAIM, A. Paz e guerra entre as nações. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. 1252 p.
BRESSIANI, N. Redistribuição e reconhecimento – nancy fraser entre jürgen habermas e axel honneth. Caderno CRH, FapUNIFESP (SciELO), v. 24, n. 62, p. 331 – 352, 2011. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/s0103-49792011000200007>.
CHRISTIAN, D.; SOARES, P. Origens: Uma grande história de tudo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 416 p.
CLAUSEWITZ, C. von; RAMOS, M. T. Da guerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. 932 p.
FRASER, N. The Old Is Dying and the New Cannot Be Born. Londres: Verso Books, 2019.
HAYEK, F. O caminho da servidão. 6. ed. São Paulo: LVM Editora, 2010. 232 p.
MORO, A.; INVERNIZZI, N. A tragédia da talidomida: a luta pelos direitos das vítimas e por melhor regulação de medicamentos. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, FapUNIFESP (SciELO), v. 24, n. 3, p. 603 – 622, 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/s0104-59702017000300004>.
THOREAU, H.; COUTO, J. A desobediência civil. 1. ed. Londres: Penguin-Companhia, 2012. 152 p. (Grandes Ideias).
WEFFORT, F. C. Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2006. v. 1. 287 p.
WEFFORT, F. C. Os Clássicos da Política. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006. v. 2. 278 p.
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