Covid-19: “Não há grandes dúvidas que entrámos na segunda vaga”

24 de setembro de 2020

João Júlio Cerqueira, médico especialista em Medicina Geral e Familiar, autor do blogue dedicado a caçar mitos e divulgar a ciência Scimed, defende que já estamos na segunda vaga de Covid-19. Alerta ainda para os riscos dos produtos que são vendidos como sendo contra doença, como o dióxido de cloro ou MMS. “É uma substância proibida em vários países não só porque é inútil mas porque mata pessoas.”

É no projeto Scimed , que tem como “o objetivo de promover a literacia em saúde da sociedade portuguesa”, que desmonta fake news e os ditos tratamentos que não passam de um logro. No que toca à pandemia, são muitas as teorias da conspiração que se acumulam. São tantas que mais parecem uma nova espécie de “pandemia”, desta feita da desinformação e que, como defende o médico, dificilmente desaparecerá.

Sempre atento a todas as investigações sobre o tema, João Júlio Cerqueira, médico especialista Medicina do Trabalho, refere ainda um estudo publicado na revista Cell que aponta que o vírus pode ter tido uma mutação que o tornou menos mortal.

Estamos já na segunda vaga de Covid-19?
Acho que nesta altura não há grandes dúvidas que entrámos na segunda vaga.

Porque é que há um aumento tão grande de casos?
É difícil responder a isso de uma forma contundente, porque o problema é multifatorial. Temos as férias que podem ter facilitado contactos e importação de casos do estrangeiro. Temos também a socialização, principalmente da camada jovem da população, sem as devidas precauções. O aumento da testagem também pode estar a dar-nos uma percepção mais real do número de casos em circulação.

Porque é que esse aumento não se tem verificado no número de mortos?
Também não existe uma explicação clara para isso. Aumento de testagem, atingimento de camada mais jovem, a utilização de máscaras e distanciamento social podem estar a levar à diminuição de cargas virais transmitidas, que tendem a provocar doença mais leve. O conhecimento da doença e de como tratá-la de forma mais eficaz também poderá ter um papel relevante na diminuição da mortalidade.

Acha que os cuidados que temos tido têm resultado?
Basta olhar para países que não tiveram esse cuidado como os Estados Unidos e o Brasil, para perceber o real perigo do vírus e a eficácia das medidas. Nos Estados Unidos, não existe nenhuma época de gripe tão mortal como a que estamos a atravessar, exceptuando a pandemia de 1918-1919. Se os números se mantiverem, no final do ano a mortalidade por COVID-19 será 4-10 vezes superior a uma época de gripe normal.

As novas indicações da DGS referem que se deve usar máscara ao ar livre, a Ordem dos Médicos defende o mesmo, por que motivo essa ação é importante? Que diferença fará?
Neste momento estão a ser usadas todas as medidas à nossa disposição para evitar uma nova tragédia económica, com a imposição de um novo Lockdown. Têm saído estudos laboratoriais, modelos e estudos observacionais que demonstram que a utilização da máscara é eficaz e eventualmente pode diminuir a gravidade da doença. Dado o baixo custo e ausência de efeitos adversos relevantes com a utilização de máscara, parece-me uma medida temporária relevante para controlo da propagação da infeção. Principalmente se permitir que a economia mantenha um funcionamento “regular”.

Quais são as principais teorias de conspiração mais difíceis de desmontar em redor da Covid-19?
Na minha opinião, todas. Porque o problema não é dependente da teoria da conspiração em si, mas das pessoas que acreditam nessas teorias. A maioria é relativamente fácil de desmontar, mas os crentes não cedem a argumentos factuais. Os estudos ou argumentos apresentados fazem também parte das teorias da conspiração, segundo eles. É um exercício circular, em termos lógicos, que não leva a lado nenhum. A maioria dessas pessoas encontram nos grupos propagadores de teorias da conspiração uma comunidade que lhes dá algum tipo de suporte emocional…uma sensação de pertença. As teorias da conspiração também ajudam a simplificar um mundo complexo, dando alguma sensação de segurança. A forma de lidar com isso é com mais formação e promoção de sentido crítico na escola e maior apoio e suporte emocional aos crentes nestas teorias.

Surgem cada vez mais produtos a proclamar ajudar a combater a Covid-19, como o dióxido de cloro. O que existe de verdade nestas questões?
Nenhuma. São produtos inúteis que são promovidos de acordo com as circunstâncias temporais. No caso do dióxido de cloro ou MMS, já foi promovido para todo o tipo de maleitas, desde cura do autismo até tratamento do HIV. É uma substância proibida em vários países não só porque é inútil mas porque mata pessoas. E é de uma desumanidade tremenda promover este tipo de produtos, colocando em risco a vida de outras pessoas. Não há, neste momento, qualquer tratamento específico para a COVID-19, perfeitamente validado em termos científicos.

O que é que o Estado e a DGS deviam fazer sobre esta questão?
O Estado há muito que se distanciou desta luta, aquando da legalização das terapias alternativas, que são também os grandes promotores de teorias de conspiração e tratamentos inúteis.

O Estado, se tivesse interesse em defender os cidadãos, deveria alterar de forma dramática a regulamentação das terapias alternativas e criminalizar a promoção de tratamentos demonstradamente inúteis e perigosos para a saúde dos cidadãos. Não é compreensível esta tolerância ou ausência de intervenção para com a charlatanice. Aliás, tende a existir uma clara sobreposição entre os negacionistas da COVID-19, aqueles que dizem que isto é “só uma gripe” e os crentes/promotores em terapias alternativas.

Que consequências traria um segundo confinamento? Em termos de saúde pública, seria eficaz?
A eficácia de medidas como confinamento generalizado é indiscutível. O que é discutível é a proporcionalidade da medida e se a “cura não é pior que a doença”. O impacto económico do confinamento foi bem visível. E a destruição de postos de trabalho, o aumento de pobreza por si só, também matam. A fundação Bill e Melinda Gates demonstraram recentemente a tragédia que a paragem da economia e a paralisação dos sistemas de saúde teve nos mais pobres. A vacinação retrocedeu para níveis da década de 90. O aumento da pobreza extrema aumentou 7%. Em 25 semanas perderam-se 25 anos de evolução nessa área.

Em que condições o confinamento seria aceitável?
Se está a questionar em que condições é que o confinamento seria aceitável, apenas perante o colapso iminente dos sistemas de saúde. O que seria algo estranho, dados os meses que o Governo teve para preparar esse cenário.

Ainda faltam muitos estudos sobre o impacto da Covid-19 nas crianças e o papel nas mesmas na transmissão. O que sabemos até agora?
Sabemos que as crianças são vetores de transmissão, ao contrário do que se pensava anteriormente. Sabemos também que a doença tende a ser leve a assintomática nessas faixas etárias, o que é um ótimo sinal. A imposição de utilização de máscaras nas crianças pode ser “chocante”, mas convém lembrar que se pretende evitar a criação de cadeias de transmissão e que as crianças tragam para casa, para os pais e avós, uma doença que pode significar a morte dessas pessoas.

Refere no seu blogue que poderá ter ocorrido uma eventual mutação do vírus que se tornou menos mortal? Podia explicar?
Pensa-se que uma mutação pode ter tornado a infeção mais contagiosa e menos potente, segundo um estudo publicado na revista Cell. Se isto for verdade, pode ajudar a explicar o aumento de casos sem um aumento proporcional do aumento de pessoas internadas e da mortalidade por COVID-19.

Quais são os conselhos das terapias alternativas mais preocupantes que encontrou?
Tenho visto terapeutas alternativos a promover produtos para o “reforço do sistema imunitário”, apesar de não haver qualquer evidência que o sustente. Estranhamente, tenho-os visto a promover a Hidroxicloroquina e a Azitromicina, fármacos da medicina convencional, apesar da evidência demonstrar que não funcionam no tratamento da COVID-19.

Tenho visto terapeutas a dizer que a homeopatia é a solução. Tenho visto alguns terapeutas alternativos a manifestar-se contra as máscaras, a favor de uma “revolta civil” porque o SARS-CoV2 é “apenas um vírus respiratório semelhante ao vírus da gripe”. Já tivemos casos de burla por promoção de Ozonoterapia para tratamento da COVID-19. Temos os promotores da MMS, que para além de ser burla, coloca em risco quem faz esse tipo de tratamento. No fundo, os terapeutas alternativos têm mantido a sua posição anti-ciência típica, promovendo serviços e venda de produtos inúteis por forma a manter o negócio.

Só uma vacina nos vai permitir voltar à antiga normalidade?
Sim…estou esperançoso que no final deste ano a vacina já tenha sido aprovada e os principais grupos de risco vacinados, o que permitirá um regresso à normalidade de forma progressiva. Às duas principais vacinas estão bem encaminhadas nesse sentido. Espero não ficar desapontado.

O que é mais surpreendente, para si, na Covid-19?
A COVID-19 veio colocar a nu algumas coisas interessantes. As pessoas perceberam que a produção de ciência não é linear, mas contém muito ruído, muita informação contraditória e que não é fácil navegar por esses mares, sem as devidas ferramentas. Também foi interessante ver a forma como a desinformação se cria e propaga. Como os crentes procuram quem lhes confirme as crenças e não propriamente a verdade dos factos. Só isso justifica a demonstração inequívoca de como os seus Messias são uma fraude e, cegamente, continuarem a apoiar essas figuras.

É interessante ver como, de repente, passamos a ter milhares de especialistas em epidemiologia e virologia nas redes sociais, típicos Dunning-Krugers que tentam discutir ciência em pé de igualdade com especialistas. Também foi interessante todo o capítulo da Hidroxicloroquina/Azitromicina, um sucesso de Marketing baseado em ciência fraca ou mesmo fraudolenta, que levou a que milhões de pessoas acreditassem que essa medicação era eficaz. Crença que não será desfeita totalmente como ainda vemos pessoas, hoje em dia, que acreditam que as vacinas causam autismo, por mais estudos que se publiquem sobre o tema.

Como contrariar o aumento de teorias da conspiração, fake news, sobre a Covid-19 à medida que as pessoas ficam cada vez mais saturadas das medidas impostas e da nova normalidade?
Não é fácil e temo que essa “pandemia” não irá desaparecer. Mas as redes sociais podiam ser muito mais interventivas na limitação da propagação desse tipo de informação. Há áreas cinzentas na ciência que devem ser reconhecidas. Mas existem outras áreas onde está perfeitamente demonstrado que a informação é falsa e deletéria para a saúde pública.

Desde os argumentos anti-vacinação para uma vacina que ainda não existe, teorias da conspiração baseadas no 5G ser a causa da pandemia por COVID-19, passando pela promoção de tratamentos alternativos inúteis para a COVID-19. Eu sou totalmente a favor da liberdade de expressão, as pessoas podem acreditar e dizer o que quiserem. Mas a disseminação da mensagem através de determinadas plataformas, torna a plataforma cúmplice da desinformação que está a ser partilhada.

De resto, apenas uma educação para a literacia em saúde, ciência e pensamento crítico poderá minorar este problema.


Fonte: Sábado Vida
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